Querida Clara,
Pensava nas palavras que proferiste na nossa última conversa
e da minha conclusão delas. Sobre os lutos.
Sobre o que já não é, nunca foi, mas que de alguma forma se
continua à espera…
Recordo-me dos dias em que os sonhos eram tão intensos que
se tornavam palpáveis. Conseguíamos
tocar-lhes. A casa tinha uma cor, sabíamos que transformaríamos a garagem numa
oficina. E o outro lado, seria o espaço para a mesa. Nunca conheci sonho onde
uma mesa de madeira tivesse mais impacto. Conhecíamos as refeições que faríamos…
e penso que até aí há uma pista importante para nos abanar deste estranho
entorpecimento. Sonhávamos com churrasco, e há anos que eu não como carne. Já
viste como o sonho foi sonhado, ainda, quando já nada nele se avistava?
O sonho tinha som de gargalhadas, macacões de ganga
desbotados e cheios de tinta. Havia, numa mesa cheia de papeis, uma máquina de
escrever. Nunca o actualizámos para um computador… E havia música e barulho,
carros estacionados à porta, cheiro de mar, areia no chão, varrida várias e
várias vezes ao dia. Havia beijos salgados e abraços protectores. Mas nunca houve
outras assinaturas, para além da nossa.
Houve tanta ingenuidade neles. Esquecemo-nos de os
partilhar, de perguntar se mais alguém estava interessado em entrar neles.
Esquecemo-nos de trabalhar seriamente para a sua concretização. Limitamo-nos a
sonhá-los, acreditando que eram tão bons que qualquer pessoa quereria fazer
parte, ainda que não os conhecesse.
Afinal, o sonho era só nosso. E é esse largar que dói. Mais
do que o sonho desfeito. É o olhar a casa, sabendo o que nunca será, deixar ir
rostos que não eram “para sempre”. Não é
o caminhar para outras paisagens que doí, é o largar as paisagens que contêm
investimentos emocionais de sonhos dos quais nunca nos despedimos.
E é tempo de o fazer. Afinal, os sonhos também têm de
crescer, não é?
Agarremo-nos ao que efectivamente É. Ao amor que nos
abençoa, aos que nos querem verdadeiramente. Já existem outros sonhos, alguns
tornados realidade. Se abrirmos o espaço que guardámos para o sonho antigo, já
imaginaste a quantidade de amor que teremos disponível para dar? São anos e
anos de amor guardado…
Quem sabe chegou esse dia. O dia de seguir – MESMO – em frente.
E não o podemos fazer levianamente. O sonho, nem que seja pela importância e
intensidade que lhe demos, merece um ritual, uma despedida, um dizer adeus
digno de tanto amor que lhe dedicámos.
Tomemos agora tempo a investir nisso, nesse adeus cheio de significado.
Abraço-te,
Leida