Há muitos anos atrás, aprendi uma lição valiosa com uma grande amiga. Nessa altura, não a percebi com a consciência com que a entendo agora, mas mexeu comigo.
O D. era meu amigo de infância. Direi mesmo o meu amigo mais antigo, gatinhámos juntos, na rebentação das ondas da nossa praia.
Talvez por isso, habituei-me desde sempre à sua forma de ser. Meio arrogante, um pouco cruel, por vezes agressivo. Mulherengo. Muito instável. Nunca se sabia bem o que esperar dele. Sem dúvida, tinha o seu lado brilhante. Era inteligente, partilhava comigo um amor incondicional pela nossa praia, defendia-me dos outros e sei que nutria verdadeiramente afecto por mim. Por isso, "aturar" as sombras dele parecia-me algo natural, ele era família, e família não se escolhe.
A A. veio passar férias comigo na praia,quando tínhamos 17 anos. Muitas outras amigas já o tinham feito, e o D. a todas mostrara o seu lado sedutor, e pouco depois, o seu lado sombra egoísta. De uma forma ou de outra, as raparigas caiam-lhe todas nas mãos. Nunca percebi muito bem porque é que tantas mulheres interessantes se apaixonavam por aquele trinca espinhas convencido e mal educado, que nem bonito era. Mas acontecia. Ele era charmoso. E tinha um sorriso especial.
Como eu esperava já, o D. de imediato deu em cima da minha amiga. E, como eu esperava, ela cedeu. No entanto, ao contrário das outras, a A. não ficou impávida quando o D. começou a mostrar o seu lado arrogante. Respondia-lhe à letra, discutiu com ele e chegou a afastar-se. As discussões entre os dois aborreciam-me imenso e um dia confrontei-a:
-Mas porque te irritas tanto? - perguntei. - Ele é assim, não há nada a fazer. É a forma dele de ser!
- Isso não me interessa nada! - foi a resposta. - Ele pode ser como quiser, mas eu não tenho de aturar isso. Eu não tenho de levar com a porcaria de alguém, pura e simplesmente porque ela É assim.
Foi a primeira vez que me dei conta de que gostar do D. e aceitá-lo, não implicava aturá-lo. Nunca me tinha dado conta disso.
Guardei essa mensagem no coração, nunca sabendo muito bem como a pôr em prática. A verdade é que sou - dentro daquilo que consigo - uma pessoa politicamente correcta. Distingo - e orgulho-me disso - sinceridade de frontalidade. Porque posso ser sincera sem usar a minha agressividade retorcida para magoar gratuitamente alguém. E raramente faço.
Depois, também acredito que somos nós que atraímos as pessoas para a nossa vida. E que somos espelhos uns dos outros. Que vemos nos outros a nossa própria beleza e rejeitamos neles a nossa sombra. Quanto mais me fui dando conta disso, mais fácil foi para mim aceitar os outros. Perceber que os seus defeitos,também eu os tinha, em alguma coisa, alguma parte da minha vida. Aprender a ser melhor, graças a isso.
No entanto, há um momento para descansar e um momento para lutar. Um momento para passar a mão no pêlo, vezes e vezes sem conta... porque o outro é assim,não tem consciência do que faz... e um momento para dizer "chega!", um momento para dizer que não dá mais para tolerar a intolerância dos outros.
É evidente que os espelhos continuam lá. Claro que atraímos pessoas para a nossa vida porque temos coisas a aprender sobre nós mesmos. E esse trabalho só poderá ser feito por nós. Mas não implica manter lá os outros e tolerar aquilo que o nosso coração já não suporta.
- Se lhe guardo ressentimento? Já não. Se aprendi a aceitá-lo? Sim. Se o quero na minha vida? Não. Porquê? Porque posso escolher.
Essa é a verdade. Aceitar que o outro é como é, aceitar a lição que nos trás, a pergunta "onde é que eu faço ISTO na minha vida?", é importante. Mas não implica envenenar a vida com a presença dessa pessoa. Posso aprender a aceitar. Posso não guardar qualquer emoção negativa. Mas não tenho de tolerar.
Porque posso Escolher!
11 comentários:
Amiga, está tanto de ti neste teu texto... por isso, talvez, eu o veja como tão honesto, tão sem cortinas de fumo.
Tal como tu, tb acredito que atraimos para a nossa vida os nossos espelhos e que por vezes nos é muito dificil vermo-nos neles; essa é uma aprendizagem que, contudo, depois do amargo de boca e dos fantasmas explusados, só nos faz crescer. Aceitando-nos, aceitamos os outros.
E, realmente, não temos que os manter na nossa vida. Basta compreender.
Obrigada, uma vez mais, minha linda.
Obrigada, minha amiga.
Tens razão, há muito de mim neste texto. Talvez por ter sido um "parto difícil", usando um termo, neste momento, habitual para mim...:)
Concordo com o que dizes.É uma aprendizagem fantástica, o descobrir que não somos mais nem menos que os outros, que temos sombras e lados feios e crueis. E perdoar, aceitar e melhorar a cada inspiração. Com consciência. Não é uma tarefa fácil olhar o rosto sem "maquilhagem". Mas sentimo-nos limpos depois disso.
E sim, não temos de desculpar qualquer coisinha... :D
:) e é tão bom poder escolher, não é? essa, também foi sem dúvida uma das maiores lições da minha vida.
somos todos espelhos uns dos outros até que nos deixamos de ver um no outro... e também, quando deixamos de ver o outro, porque isso implica deixar de nos ver naturalmente.
Quando é assim, só nos resta compreender o que fazemos por lá, e, se lá queremos e merecemos estar. e isto, não necessita de ser justificado a quem quer que seja, a não ser a nós próprios.. chamem-lhe arrogância.. ;)
é magnifico este teu texto.. gosto muito de ti.
um abraço apertado. grande, grande como a tua alma.
Neptuna, SIM! Foi essa a (re)descoberta de ontem. É esse o nosso maior poder, a escolha! Podemos escolher! E isso não tem mal nenhum.
E os espelhos passam por trabalho interno, trabalho nosso! Os outros estuveram lá para dar o sinal. É nesse sentido que acabamos por agradecer às pessoas que nos apareceram no caminho, mesmo as que nos magoaram.Mas é um agradecimento pelo wake up call... não é sinal de que t~em de lá ficar!
E as justificações - sem sombra de dúvida - são meramente nossas e para nós!
Obrigada pelas palavras. Como já referi, não foi fácil escrevê-lo-:)
Eu também gosto muito, mesmo muito de ti!
És uma pessoa linda, amiga. Orgulho-me de te ter conhecido e de ser teu amigo...
Beijinho grande
PB, obrigada muito. Palavras bem vindas! Um enorme abraço.
Boa reflexão, texto fantástico, profundo, verdadeiro...
Por vezes nada fácil esse "olhar ao espelho"...
Bjos
Olá :)
Pois é... ainda "existo"... mas acho que sabes isso, não?
Ora... mais que o beijo merecido, as palavras belas, a tua essência e os ensinamentos que partilhas semre connosco... aqui está o que mais tenho saudades.
E lá está... tocaste no âmago, na ferida de muito "boa" gente... a aceitação...
E, lá está, foi bom conseguir retornar aqui e ler-te, sentir-te com os olhos e a alma da primeira vez que cruzei o teu caminho, quando era e agora que voltei a ser só a pequenina presença.
Um beijo enorme e aconteça o que acontecer, não deixes de partilhar.
Muito bom, mesmo! Fez-me pensar!
Gostei.... E vou tomar uma atitude e já volto! ;)
beijo
dizer "chega", o que dói mais.
Díficil não é lutar pelo que se quer, mas sim desistir daquilo que mais se ama!
Boas festas (:
Querida,
Vim ao teu blog, saudades tuas, das tuas escritas...
Reli este texto, incrível como escreves, como continua actual.
Obrigada ;)
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