Com a infância regada pelo cheiro da maresia, de peixe fresquinho ainda a saltar no fundo dos barcos e do cheiro rude e salgado dos homens do Mar, Vicente inchava de orgulho a cada elogio tecido ao seu padrinho,de quem herdara o nome.
- O ti Vicente tem mão d'ouro, para onde manda a cana, é onde eles fazem a festa.
Aqueles homens, enfiados nos gorros de lã, camisas de xadrez em flanela e botas de borracha até ao joelho, pareciam-lhe mais fortes do que os herois dos quadradinhos. Todos os dias enfrentavam o gigante azul, em busca de sustento para a família. Onde existiria maior nobreza?
Foi numa tarde ventosa de Novembro que o barco encalhou na rocha e se virou, jogando os homens ao Mar e, juntamente com eles, o pequeno Vicente, que decidira acompanhá-los.
Não houve perdas, nem feridos. No entanto, os segundos sentidos como anos, passados a esbracejar, para depois vir ao de cima e encontrar o barco virado sobre a sua cabeça, enclausurando-o na mais completa escuridão, encheram de terror o pequeno, que se convenceu de que morrera, antes dos braços fortes do ti Vicente o resgatarem da água e do pesadelo.
A partir desse dia jurou que não morreria no mar e não mais se aproximou deste, dos barcos de pesca ou das camisolas do padrinho. Ouvia as histórias dos homens,mas longe da praia.
A pesca era agora um sonho longínquo, como aqueles dos colegas de escola, que queriam ser astronautas, sabendo de antemão que não passariam do 6º ano.
Passaram-se os anos e Vicente tornou-se um homem. Saiu da escola e foi trabalhar com o pai, na loja de ferragens,seguindo as pisadas dos dois irmãos mais velhos. Era um bom trabalho, honesto, simples, sem a instabilidade da pesca ou dos mares de Inverno. Então, porque é que o seu coração, às vezes, parecia tão vazio que quase não o sentia?
Visitou o ti Vicente, que já não ia ao Mar há muito, num Verão quente e seco, daqueles em que a chuva viaja para longe sem bilhete de regresso. E o pedido do velhinho comoveu-o.
- Leva-me a ver o Mar, filho. Sabes que sozinho já não consigo.
Vicente agarrou no padrinho cambaleante, envolveu-o nos seus braços fortes e, em curtos passos, caminharam até à rocha,de onde se via o Mar.
Foi um instante em que ele olhou para cima, seguindo o voo das gaivotas. Baixou a cabeça e o ti Vicente desaparecera. Caíra, atirara-se, voara? Debruçou-se e viu o velhote esbracejando, a cabeça surgindo entre a espuma branca, numa busca desesperada de ar.
Vicente jogou-se de cabeça, sem se preocupar com nada que não aquele velho ti Vicente, que lhe iluminara a infância.
Ajudou-o o chegar à areia. Vinham os dois sorrindo. Teria o velho feito de propósito? Vicente não o poderia saber? Aquele mergulho, porém, trouxera de volta os seus sonhos.
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