Assim que passo a ponte, o volante guina-se suavemente para a direita, como se não fosse eu a autora do acto.
Vou devagar. A meu lado, descalça, caminhando pela estrada, que em dias mais quentes queima a planta dos pés, o fantasma dela segue serenamente.
Coincidentemente, os lugares estão ambos vazios. Havia um tempo em que ela tinha de colocar grades vazias, para permitir que as pessoas chegassem ao quiosque.
O silêncio reina, quando desligo a chave. Olho para o pátio. Agora ela saí pela porta da frente, observando a estrada. O olhar atravessa-me, procura um vislumbre da natureza, por entre os dois prédios da frente. Houve um tempo em que eram apenas casas com telhados pontiagudos.
Senta-se no sofá laranja, e suspira, antes de abrir o caderno de capa preta, para rabiscar coisas que não consigo ler, mas sei o que são.
Desvio o olhar. Subo a passadeira, achando que não me seguirá. Mas ali está ela, sentada, no lado esquerdo, ainda a escrever. Desço para a praia, e inspiro a brisa salgada, as baterias a carregarem a uma velocidade vertiginosa, as emoções a aflorarem entre um misto de euforia, saudosismo e identificação. As lágrimas surgem, mas não descem, ficam suspensas entre quem fui e quem sou, reconhecendo que a matéria é a mesma, mas que a forma é totalmente diferente.
Sento-me, os dedos enterram-se nos grãos de areia e ela continua por ali. Mergulha sozinha e nada até quase não ser vista, apanha conchas, grita como uma louca, de braços abertos, chora desalmadamente deitada a meu lado, raspa a areia à luz das estrelas, só para a ver reluzir, embala-se nos sonhos mais profundos. Se sabe que ali estou, finge não me ver. Mas não sei ao certo se o sabe...
Quando regresso, continua ali, sentada no banco, olhando um por do sol que eu não vejo, esperando as estrelas e os sonhos. Deixo-a lá.
"És apenas um fantasma." - murmuro.
Sou bloqueada por uns braços que me olham com comoção, como se o fantasma fosse eu.
- Lita! - diz a vizinha Inácia. - O meu coração deu um salto quando te vi subir a passadeira. Nem queria acreditar que eras tu.
Abraço-a, enquanto o nome carinhoso me ecoa por todo o corpo, o conforto da infância, a segurança das ligações eternas, as noites dos jogos, as fogueiras, as escapadelas pela janela e a dança. As intermináveis noites de dança "em frente à água".
Não és um fantasma. És feita da mesma matéria que eu, tal como esta areia, esta brisa salgada, a estrada demasiado estreita para tantos carros, mas que não deixa de ser concorrida por causa disso. Eu é que te abandonei, porque doía demasiado. Ainda dói um bocadinho. Mas és parte de mim. E eu quero-me inteira.
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